sexta-feira, 24 de abril de 2015

"Thanatomorphose II" by Denilce Luca
"Face" by Denilce Luca
"Woman in Mask" by Denilce Luca

"Thanatomorphose" by Denilce Luca
Sonâmbulos (Denilce Luca)

Deitados na mesma cama em que dividiam há mais de quarenta anos estavam Ele e Ela.

Compartilhando mais uma noite. Adormecidos, puseram-se a conversar, algo que há alguns anos não mais faziam.

“Mira meu corpo”, disse Ela. “Veja no que se transformou.”

“A meus olhos continua bela”, replica Ele com um aparente descaso.

“Fui bela. Hoje não mais. Meu corpo foi sugado. Por ti e nossa cria. Meus olhos perderam o brilho, talvez por tê-los fechado tantas vezes para não ver o que fazias enquanto não podiam mirá-lo. Cerrava os olhos, porém uma voz me contava... uma voz soava e me devorava as entranhas. Eu sabia o que você fazia. Eu sabia que meu corpo enquanto tenro te servia de aprendizado. Fazia em outras o que me fazia gemer. Repetia em vadias os carinhos dispensados. Não mais me desejou ao ver meus seios murchos. Meu corpo flácido. Te servia enquanto bela.”

“Não foram teus seios ou teu corpo que me desencantaram, querida! Foi tua amargura. Tua vontade de me aprisionar em teu útero. Foi teu desinteresse. Tua falta de vontade de ser desejada. Tua frigidez. Teu descaso. Não foi tocar tua pele flácida que me tirou todo o desejo. Foram teus olhos frios. A falta de teu toque. A falta da mulher que dantes acolhia minha alma. Tive outras. Algumas poucas cujos corpos eram belos, mas nenhuma tinha tua alma. Tua beleza. Nenhuma delas amei. Procurei nelas algo que não mais via em ti.”

“Te amei... muito te amei. Amei um homem que era para mim o mundo.”

“Destruíste o homem que havia em mim. Abri mão de meus desejos. Abri mão de minhas vontades. Abri mão de minha vida. Tudo pela mulher que mais amei.”

“Destruíste a mulher em mim. Abri mão de minha vida para lhe servir.”

Juntos, pensativos, Ele e Ela em uníssono disseram: “Eras tudo o que amei. Até que, tentando ser tudo o que eu queria que fostes, deixaste de ser quem amei...”  

Deram-se as mãos. Juntos, um suspiro profundo. O último. De ambos. Talvez agora, almas livres, possam amar um ao outro de verdade... Amar sem amarras. Amar por amar. Amar por querer, tão-somente, amar.